Ainda estou aqui
- novembro 22, 2024
Início do primeiro capítulo
175 vezes por minuto.
Era essa a velocidade do meu coração naquele momento. O frequencímetro cardíaco preso ao meu tórax captava o número de batimentos do meu coração a cada instante e não parava de apitar, indicando que eu havia ultrapassado a frequência planejada como meu limite de segurança.
Pudera! Eu estava correndo sobre um mar de areia fina, subindo e descendo dunas com mais de 15 metros de altura. No alto, o sol ardia inclemente.
Todo esse ambiente explodia numa variedade incrível de cores: amarelo alaranjado da areia, azul brilhante do céu, vermelho brasa do sol, marrom claro da terra seca.
Desde o início da manhã eu havia corrido 25 quilômetros, ora sobre montanhas e terrenos pedregosos, ora afundando em dunas como essas que agora engoliam meus pés a cada passada.
Parecia que aquilo iria durar pra sempre.
Até onde a vista alcançava não havia uma nuvem ou sombra sequer aliviando o calor. Árvores que eu pudesse passar por baixo e me refrescar por alguns instantes? Nem pensar!
As dunas haviam acabado; pelo menos, por enquanto. Os dois quilômetros que eu começaria a enfrentar voltaram a ser de terra.
E como a sola do pé doía! As pedrinhas que pareciam brotar do chão conforme eu passava desrespeitavam até o solado de borracha do tênis.
Na última hora e meia eu já havia ultrapassado algumas dezenas de competidores, o que me dava força pra manter o ritmo forte, mesmo com as constantes reclamações do frequencímetro cardíaco.
Ainda corri por mais dois quilômetros até avistar algo no horizonte que em nada combinava com o que eu conhecia sobre relevos e cores de desertos. Suspeita em mente, continuei naquela direção na tentativa de entender o que poderia ser. Em alguns minutos confirmei minha suposição. Aquele era o pórtico de entrada do acampamento que tanto torci pra surgir no horizonte.
Eu havia chegado à região de Khermou, no coração do deserto do Saara.
Completei, em pouco mais de quatro horas, os 30 quilômetros desse primeiro dia da Marathon des Sables, considerada a ultramaratona mais cascudas do planeta.
E eu era o primeiro brasileiro a conseguir!
Assim que cruzei a linha de chegada e entrei no acampamento, um dos organizadores da prova registrou meu número de identificação na planilha e indicou a fila onde estavam sendo distribuídas as duas últimas garrafas d’água a que eu teria direito naquele dia. Agradeci e fui pegá-las.
De súbito, quando faltavam poucos metros pra chegar à fila, senti uma forte dor no estômago. Uma mão de ferro apertou minhas vísceras!
O excesso de esforço nas últimas horas havia bagunçado demais meu organismo. Shakespeare estava coberto de razão ao escrever que “todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente”.
E esse sofrimento não era o pior dos problemas! Pelo regulamento, os membros da equipe médica deveriam retirar da prova qualquer competidor que apresentasse condições clínicas perigosas à própria integridade física. Eu não poderia correr o risco de que tantos meses de sacrifícios, investidos em meu pesado treinamento físico, se perdessem daquela maneira, já no primeiro dia de competição. Decidi, então, me esconder da ajuda médica; fingir que nada de errado estava acontecendo.
Entrei na fila da água mantendo o melhor sorriso que aquela condição me permitia disfarçar.
Após alguns minutos e muitas dores, garrafas na mão, caminhei em direção à minha tenda. Estava crente que o pior já tinha passado.
Não tinha.
Não consegui chegar lá.
Os poucos metros que me separavam da tenda, onde eu poderia me jogar no chão pra descansar, pareceram mais distantes e sofridos do que os 30 quilômetros que eu havia acabado de correr.
(...)
Ainda não há resenhas.